sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Asperger e cinema, ligados por bases nitrogenadas

escrito por Fernanda Savoia Trindade




Foi em Paris, 1895, onde aconteceu a primeira exibição pública cinematográfica. Porém, nem Lumière, um dos inventores do cinema, acreditava que este poderia ser encarado como arte. O “cinematógrapho”, segundo ele próprio, fora desenvolvido em prol da ciência e seria utilizado, portanto, somente para pesquisas. Porém, hoje, tal área de intensa exploração audiovisual, inicialmente apenas visual, utiliza de sua linguagem para transmitir desde a pura realidade até a ficção mais surrealista.
                Defendendo a idéia de que o cinema fora utilizado como meio de manipulação pela burguesia, Jean- Claude Bernardet, em seu livro “O que é Cinema?”, afirma: “A mecânica elimina a intervenção e assegura a objetividade. Portanto, sem intervenção, sem deformações, (...), coloca na tela a própria realidade”. Porém, podemos notar que tal meio não encontra sua utilização apenas nisso. Este é capaz de nos colocar em contato com assuntos muitas vezes desconhecidos, e ao mesmo tempo, interessantíssimos. É o caso da abordagem, por exemplo, de campos que englobam a psicologia e a medicina.
                Dentre as áreas citadas acima, é possível destacar um assunto em específico que, com certa freqüência, é abordado pelo cinema. Estou falando da Síndrome de Asperger. Podemos observar seus aspectos marcantes em filmes como “Loucos de Amor” e a animação “Mary and Max”. Ainda poderíamos citar “Rain Man”, porém este aborda o Autismo, cujas diferenças em relação à SA são significativas.



trailer “Rain Man"

























trailer “Mary and Max"






















www.maryandmax.com (site oficial do filme)



Há sessenta anos, Hans Asperger, um psiquiatra austríaco, escreveu sobre crianças extremamente inteligentes, que, porém, apresentavam uma série de comportamentos comuns em pessoas com Autismo, tais como dificuldades claras ao se relacionar e se comunicar. Esta condição foi chamada de Síndrome de Asperger, em 1981. Em 1984, foi incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID.10), pela OMS, manual utilizado pelos profissionais da saúde mental.

Resumidamente, a SA consiste em uma forma leve do Autismo clássico. Segundo Paulo Teixeira, licenciado em Psicologia pela Universidade Lusíada do Porto (Portugal), “Apesar de existirem algumas semelhanças com o Autismo, as pessoas com SA geralmente têm elevadas habilidades cognitivas (pelo menos Q.I. normal, às vezes indo até às faixas mais altas) (...).”. Ainda segundo Teixeira, “(...) enquanto o Autismo tem sido encontrado à taxa de 4 a cada 10.000 crianças, estima-se que a SA esteja na faixa de 20 a 25 por 10.000(...).”. 

Estudos mostram que a Síndrome mostra-se mais freqüente em homens do que em mulheres. Porém, a razão para isso é desconhecida. E, também, não há comprovação científica de que haja, em todos os casos, influência genética. Porém, em certos casos em que o pai é afetado ou possui alguns dos sintomas, tal influência é clara. Além disso, fatores genéticos parecem ser mais comuns quando tratamos de Asperger do que do Autismo clássico.

                Em termos leigos, é possível dizer que, de modo geral, portadores da SA apresentam: expressões faciais incomuns, que não correspondem ao esperado; dificuldade em interpretar e aprender as capacidades da interação social; dificuldade em manter contato visual direto com as pessoas; gestos corporais incomuns, muitas vezes “mecânicos”; interesses focados em áreas específicas; falta de interesse espontâneo em dividir experiências com os outros; falta de reciprocidade emocional e social; etc. E, segundo um relatório de fevereiro de 2007, do “Center for Disease Control and Prevention”, constatou que 1 pessoa em 150 tem Asperger, ou algum outro transtorno autista. 

                Ao realizar a leitura do livro “Olhe nos meus Olhos”, em que o autor John Elder Robison sofre de SA e relata seus triunfos e dificuldades, pude relacioná-lo com os filmes já citados. Em “Loucos de Amor”, a imagem do protagonista Josh Hartnett nos chama atenção, pois se trata do único personagem que não consegue manter os olhos fixos na pessoa com quem fala. No livro, John conta que, em sua infância e juventude, era visto como “mau-caráter” por não olhar as pessoas nos olhos. Quando, na verdade, fazia isso, pois se dispersava facilmente das conversas. Portanto, necessitava se focar em um ponto fixo, onde não obtivesse muitas ações simultâneas em seu campo visual.


Outro aspecto que é, talvez, o mais marcante, é a falta de compreensão quanto à interação social dos afetados pela SA. Tanto no livro quanto na animação “Mary and Max”, os portadores da síndrome têm dificuldades ao lidar com situações simples do cotidiano. No filme, Max é acompanhado por um psiquiatra (Dr. Bernard Hector Hazelhoff) o qual lhe dá conselhos que permitem que Max não destrua seus relacionamentos.

                No filme, a vizinha de Max (Ivy Ruby Bevan), idosa e praticamente cega, se mostra muito companheira deste ao longo da história. Faz-lhe comida e o ajuda a manter a casa quando Max passa um período de tempo no hospital. Ivy dizia que Max cheirava a licor e livros velhos. Já Max, achava que Ivy cheirava a remédios e urina. Porém, Dr. Bernard diz a Max para que não diga nada a Ivy. Tal situação mostra que o óbvio para a maioria das pessoas, ou seja, o que devemos dizer e o que devemos guardar para nós, pode não ser nem um pouco para alguém com a SA.
                Fora inúmeras outras cenas em que podemos notar o mesmo aspecto abordado acima, há também a inquietação e nervosismo de Max ao receber as cartas de Mary, sua amiga de 8 anos. Este chega a depender de remédios para conter suas emoções.

Já no livro, o autor mostra como que, quando criança, interagia durante conversas: “ (...) E, aos nove anos, tive uma revelação: aprendi a conversar com outras crianças. Quando alguém me dissesse: ‘Olha meu caminhão’, ele esperava que eu respondesse algo que fizesse sentido dentro do contexto daquela frase. Antes dessa revelação, eu teria respondido: a) Eu tenho um helicóptero./ b)Quero alguns biscoitos./ c)Minha mãe está brava comigo./ d)Andei a cavalo no parque.”.


O modo humorado com que John apresenta seus pensamentos acima pode ser notado, também, em várias cenas do filme para revelar certas “manias” de Max. Um exemplo disso é o fato de que a personagem utiliza capacete ao sair às ruas durante a primavera. Pois, quando criança, nesta mesma época, um corvo havia colidido com sua cabeça, o levando à enfermaria da escola.

Quando Mary se forma em Psicologia, esta escreve um livro sobre Max, tratando da Síndrome de Asperger. Este não recebe nem um pouco bem a notícia. E o principal motivo para isso, é que na carta enviada por Mary, para contar a novidade, estava escrito que “havia esperança para a cura de sua doença”. E na verdade, Max não só aceitava seu jeito de ser, como também tinha orgulho de ser um Asperger. Ao mesmo tempo em que John Elder afirma na pág. 19 de seu livro: “Levou bastante tempo para que eu chegasse a este ponto, para saber quem eu sou. Meus dias de clandestinidade acabaram. Orgulho-me de ser um Asperger.”.



Bibliografia:

BERNARDET, JC. O que é cinema?. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção Primeiros Passos; 9)
ROBISON, J. E. Olhe nos meus olhos: minha vida com Síndrome de Asperger. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008
ELLIOT, A. Mary and Max. [Filme-vídeo]
NAESS, P. Loucos de Amor. [Filme-vídeo]
TEIXEIRA, P. Síndrome de Asperger. Universidade Lusíada do Porto, Portugal

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